Por
Emmanuel de Macedo Soares
Em julho de 1892, uma das mais fortes ressacas já assistidas em Niterói arremessou contra a amurada da rua da Praia três barcas da Cantareira. O acontecimento se transformou em prato do dia da curiosidade popular, não se falando de suas consequências até mesmo polÃticas, pois para a retirada das barcas encalhadas muito teve de lutar a Câmara Municipal, contra a Companhia Cantareira.
"Com a grande ressaca e ventania de ontem, as barcas "Primeira", "Sexta" e "Paquetá" rebentaram as correntes de amarração e foram lançadas sobre o cais entre as ruas São João e Marechal Deodoro, onde continuam a ser batidas pelo mar. As barcas garraram uma de cada vez e treparam no cais, mesmo em frente ao Palácio da Câmara Estadual"... (O Fluminense, 14 de julho de 1892)
O pintor niteroiense Pinto Bandeira, que então amargava sua pobreza na terra natal, desprezado e incompreendido, fazendo estandartes de clubes carnavalescos para sobreviver, teve a ideia de fixar na tela o entrechoque das barcas, em todo o seu ineditismo. E daà resultou aquele que muita gente considera o mais niteroiense de seus quadros: "A Ressaca". O trabalho, magnÃfico como todos os outros deste pintor feiticeiro, ficou exposto durante longos meses numa loja de vidros e molduras da Rua Marechal Deodoro, cujo proprietário, por sinal, iria morrer justamente num desastre de barcas - o incêndio da "Terceira", em 1895.
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O poeta Guilherme Martins (Guil-Mar), que então assinava com o pseudónimo de Fritz uns sonetos humorÃsticos na primeira página de O Fluminense, saudou o aparecimento do quadro com a magia de seus 14 versos. Mas apesar disso, a tela não encontrou comprador ou o artista não a quis vender. Em 1896, Pinto Bandeira morria, aos 33 anos, lançando-se à s águas da Guanabara num gesto de fome e desespero.
O quadro ficou desde aà com suas irmãs, herdeiras de sua pobreza e guardiãs de sua glória.
Muitos anos depois, quando se inaugurou o Museu Antônio Parreiras, "A Ressaca" e mais 7 telas de Pinto Bandeira foram para ele transferidas, para participar de uma retrospectiva da pintura brasileira ali realizada. Por essa época, no desejo de amenizar a situação financeira da famÃlia do pintor, e ao mesmo tempo de conservar aquele seu trabalho, um niteroiense ilustre e sensÃvel por todos os tÃtulos desejou adquirir o quadro. Era diretor do Museu Antônio Parreiras o caricaturista Jefferson d'Avila Júnior, que não permitiu a compra, desejando incorporar a obra à casa de Parreiras.
Jefferson, infelizmente, não moveu uma palha nesse sentido. Foi mantendo no museu a tela famosa, na esperança de incorporá-la por força de um dispositivo aleijado dos estatutos do Museu, que considera de sua propriedade as obras ali depositadas. As irmãs de Pinto Bandeira foram morrendo na mesma pobreza, e o quadro terminou abandonado à umidade e ao apodrecimento, nos porões do Museu. Recentemente, sendo diretor do Museu Parreiras o critico de arte Carlos Roberto Maciel Levy, fez-se pela primeira vez em quase quarenta anos o levantamento do acervo e do patrimônio daquela Casa. Descobriu então quadro de Pinto Bandeira, e, com ele, a documentação que legalizava a posse da famÃlia do artista. Assim foi o quadro devolvido a seus últimos herdeiros.
Há quatro meses o quadro reapareceu, magnificamente recuperado pelo talento de Claudio Teixeira, em tudo sucessor da grandiosidade do pai, o professor Oswaldo Teixeira. Estava à venda na galeria de MaurÃcio Pontual, pela quantia de 100 mil cruzeiros. Coube ao colecionador Cláudio Ferreira, admirador e estudioso da obra de Pinto Bandeira, chamar a minha atenção para esse reaparecimento. Desde então todos nos empenhamos, o próprio Mauricio Pontual conosco, para que "A Ressaca" não saÃsse de Niterói, pelo significado inédito que tem para a tradição cultural e artÃstica de nossa terra.
Hoje o quadro está sendo disputado a unhas e dentes por famoso colecionador de São Paulo. Sua venda para aquele Estado representará uma perda - mais uma perda - inestimável para Niterói, que jamais conseguirá nova oportunidade para recuperá-lo.
Por tudo isso, lanço daqui, em nome da cidade, um apelo patético ao Sr. Prefeito Moreira Franco, aos Clubes de Serviço, à s entidades de classe, aos particulares e a todos que amam Niterói: não deixem que se vá para São Paulo ou para qualquer lugar esse quadro de Pinto Bandeira, um dos muito poucos que ainda temos ocasião de encontrar no mercado. A cidade conta hoje com dois excelentes museus, o Histórico do Estado do Rio e o Antônio Parreiras, ambos em condições de receber e resguardar essa peça valiosa. A própria Prefeitura Municipal tem seu patrimônio artÃstico e poderá resguardá-lo, resguardando com ele, para as gerações futuras, a memória daquele que foi o maior - a despeito de Parreiras - o mais sofrido e o mais injustiçado dos pintores niteroienses.
Leia também: Quem é Pinto Bandeira?
O Fluminense, 25 de março de 1978
Pesquisa e Edição Alexandre Porto