Carta aberta ao insigne pintor Antonio Parreiras
Não é vezo nosso provocar nem manter polêmicas pela imprensa, mas tratando-se de assunto do qual tenhamos ocupado, é forçoso recorrermos às colunas dessa tribuna popular para esclarecer dúvidas e rebater aquilo que não se aproxime da verdade.
Não há, insigne professor, quem não saiba nesta cidade, que o signatário desta, tenha sido o munÃcipe que por meio de uma petição se dirigira ao ilustre dr. prefeito municipal, solicitando execução da deliberação n. 55 de 5 de Março de 1906, autorizando a confecção do retrato de Martim Affonso de Souza, o Arariboia.
E s. ex., o dr. João Pereira Ferraz, atendendo as nossas ponderações, imediatamente determinou que o quadro daquele famoso Ãndio fosse confeccionado.
Casadas as nossas ideias com as do meu amigo sr. Hildebrando de Araújo, secretário da Prefeitura Municipal, de que o pintor fosse brasileiro, e melhor seria, filho de Nictheroy, aguardou-se o regresso do eminente professor Parreiras.
Dias após à chegada do hábil e competentÃssimo patrÃcio, foi na contabilidade municipal lavrado o respectivo contrato, assinando como testemunhas o humilde autor destas linhas e um descendente do fundador da cidade, o sr. José Luiz de Arariboia Cardoso.
Explicado por que vim ocupar a tribuna popular, passemos a refutar o que foi ontem publicado nesta folha.
De modo algum, insigne professor, podemos aceitar a vossa dissertação relativamente aos considerandos aduzidos em favor de pintar o Arariboia com os trajes do nosso pai Adão.
V. s., professor Parreiras, tem que respeitar a lei municipal, isto é, fazer o quadro tal qual o exige o art. 1º que assim se exprime:
"Fica o prefeito autorizado a mandar confeccionar, em tamanho natural, o retrato de Martim Afonso de Souza, modelado pelo que existe na Biblioteca Nacional, e que será colocado no salão nobre da Câmara Municipal."
Leu com atenção, ilustre professor?
"Modelado pelo que existe na Biblioteca Nacional."
Logo, Vossa Senhoria não o deve pintar, perdoe-me a franqueza e a rudeza da linguagem, nu, com penas, arco, flecha, colar, penachos e bugigangas!
Deve confeccioná-lo tal qual o texto do legislador, e que foi aprovado. Então acha o ilustre pintor que Arariboia não podia andar vestido nem de espada, porque facilmente seria conhecido e faria barulho nas florestas?
Que coisa estupenda!
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Litografia que representa Arariboia, publicada em 1866 na Coleção Brazil Histórico, em 1866. (Biblioteca Nacional) |
Que feio não fariam os soldados quando em combate, internados nas matas, sem roupa, sem espada, etc! Brigariam à unha, à faca e a pau.
Imagine, sr. professor Parreiras, se na revolta da Armada, em 1893, tirássemos a farda de soldado do Batalhão Acadêmico, desprezássemos o sabre Mauser e entrássemos em luta a guisa de caboclo, o que nos aconteceria?
Que disparate! Para não sermos conhecidos, tirar o fardamento, e para não fazer ruÃdo, deixar a durindana!
E não somos e não fomos Arariboia, nem o nosso cérebro está ainda, felizmente, atrofiado para conceber semelhante ideia. Não seria melhor nu e com a faca na cinta?
Imagine, insigne pintor Parreiras, se fossemos legislador e apresentasse à consideração dos nossos pares o seguinte projeto, cujo texto não fosse cumprido:
"Art. 1: Fica o prefeito autorizado a mandar confeccionar em tamanho natural, o retrato de Antonio Parreiras, modelado pelo busto de bronze que se acha enrolado em um cobertor e atirado no assoalho da secretaria da Câmara Municipal de Nictheroy."
Calcule a decepção do autor do projeto, encontrando-o depois em um pedestal, em uma praça, publicassem a cabeleira e a barba à Nazareno, com cara de bebê e em fraldas de camisa!
Que horror! Como não ficaria estropiado aquele cérebro!
Professor Parreiras, aqui entre nós, um conselho: Faça o Arariboia com o fardamento que o rei lhe deu e não com tanga de penas nem de pele de onça ou de cobra jiboia, porque a lei 55 exige pelo modelado que se acha na Biblioteca Nacional, e mesmo porque não se trata de um quadro da fundação da cidade, e ainda assim Arariboia era já um Ãndio batizado e chamava-se Martim Affonso de Souza.
A vossa vontade, talentoso brasileiro, não pode ser soberana,
maximé em obediência a um contrato.
João Antonio da Silva
O Fluminense, 27 de Novembro de 1907
SÉRIE: ARARIBOIA DE PARREIRAS
01 - Introdução
02 - A Encomenda e as Primeiras ideias do pintor
03 - O Contrato
04 - A Cidade Dividida
05 - Fundamentos para a Composição, por Antonio Parreiras
06 - Carta Aberta ao Insigne Pintor Antonio Parreiras, por J. A. da Silva
07 - Petição pede ao prefeito que não aceite o quadro de Parreiras
08 - O Quadro segundo Manoel BenÃcio
09 - Surge Nictheroy, crÃtica de O Paiz
10 - O Quadro de Antonio Parreiras, por Rubens Barbosa
11 - Manoel BenÃcio responde a Rubens Barbosa
12 - Parreira responde aos crÃticos
Leia também:
Antonio Parreiras;
'A Morte de Estácio de Sá', de Antonio Parreiras;
"Panorama de Nictheroy", de Antonio Parreiras