por Emmanuel de Bragança*
Quando escrevemos
aqui que Niterói não tinha 400 anos, e que Arariboia não fora seu fundador, sabíamos que estávamos sujeitos a dois tipos clássicos de crítica: a séria, consciente e interessada, dos estudiosos; e a mórbida, dos emperrados, vítimas muito comuns da preguiça mental ainda bastante acentuada neste século da Comunicação. Felizmente, topamos com mais interessados do que demolidores.
De qualquer forma, ficamos na obrigação moral de mostrar o argumento de que nos valemos para aquelas afirmações. Mas não poderíamos fazê-lo sem uma prévia explicação: em primeiro lugar, não pretendemos, em momento algum, afirmar a inexistência de Arariboia ou negar-lhe o mérito na campanha contra os franceses: isto seria uma inqualificável estupidez, só comparável ao vício de erradamente interpretar-se aquilo que corretamente se leu. Em segundo lugar, não pretendemos a polêmica inútil, palavrosa e sem grandeza, mas o restabelecimento da verdade histórica, para bem dos que estudarão, amanhã, as autênticas tradições de Niterói.
Agora, vamos aos pontos fundamentais de nossa tese, que, repetimos, não nega a existência nem os feitos de Arariboia, mas, tão somente, a fundação, por ele, da cidade de Niterói, e a data da fundação, fixada, não sabemos com base em que raciocínio, em 22 de novembro de 1573.
O Feriado de 22 de novembro
Nossa primeira pergunta é a seguinte: algum dos historiadores, de Niterói ou não, considerou o 22 de Novembro como data de fundação da cidade? A resposta é absolutamente negativa. Nosso primeiro historiador, o Comendador Joaquim Norberto de Souza e Silva, embora bairrista, reconhecia as origens cariocas do Aldeamento de São Lourenço. Apenas afirmou erroneamente que esse aldeamento se transferiu para este lado da Guanabara em 1568. Não menciona o 22 de novembro senão pelo seu real significado: a posse de Arariboia sobre a sesmaria que recebera de Mem de Sá, em 16 de março de 1568. O mesmo dizem os demais: Matoso Maia Forte, Manuel Benício, Antônio Figueira de Almeida. Nenhum teve a fraqueza de atribuir a uma data perfeitamente configurada interpretação diferente.
O que é uma cidade?
Hoje como ontem, a Cidade é uma entidade jurídica, e, como tal, definida pela presença e permanência - de componentes físicos, dentre os quais o Patrimônio (no caso a posse de seis léguas mínimas de terra para aforamento a terceiros) e o Poder Governativo, significado por uma Câmara dos Vereadores e por um corpo de eleitores. Assim determinavam as Ordenações Manuelinas, em vigor no ano de 1573. Pergunta-se: havia o Poder Governativo constituído em 1573? Não. Havia o Patrimônio público? Não. O que se deu a 22 de novembro de 1573 foi apenas a posse de um concessionário sobre uma porção de terra que deveria aproveitar para si e seus ascendentes e descendentes. Uma concessão como outra qualquer, semelhante a treze feitas anteriormente a esta.
Pode também considerar-se fundação da cidade a data do Ato Edílico que a constituiu. Este ato não foi praticado a 22 de novembro de 1573, mas somente a 28 de março de 1835 - no caso a lei nº 6, aprovada pela primeira Assembleia Legislativa Provincial, que elevou à cidade a então Vila Real da Praia Grande, já transformada, dois dias antes, em Capital da Província. Portanto, faltam ainda 262 anos para o IV Centenário de Niterói. A menos que haja muito avanço nas conquistas da Ciência, nenhum de nós terá a oportunidade de presenciá-lo.
E, finalmente, também se pode considerar como data de fundação de uma cidade aquela em que se estabeleceu o núcleo de povoação da qual se originaria. Pergunta-se: pode-se dar este significado - ainda que honorífico - aos 22 de novembro de 1573? Cremos que não. Não lhe atribuíram tal os historiadores citados, e não lhe atribuiremos nós, que não temos autoridade deles, embora essa "autoridade", segundo os padrões de nossa caótica historiografia, mais facilmente se adquira pela concessão ao tradicional do que pela conquista das verdades.
Aí temos a sustentação de nossa primeira afirmativa: não há quarto centenário algum comemorar-se em 1973. Humildemente nos dobraremos a quem nos provar o contrário.
1. Localização da Aldeia de São Lourenço
O bairrismo de nosso primeiro historiador, o
Comendador Joaquim Norberto de Souza e Silva (aliás um bom romancista), impediu-o de analisar fria e serenamente os subsídios que teve em mãos. Com sua autoridade de membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro ele fixou as origens de Niterói em 1568, ano em que se teria dado em nossas águas o último combate entre temiminós, franceses e tamoios.
A minuciosa descrição desse combate, feita pelo
Padre Fernão Cardim, em 1598, e, posteriormente, pelo historiador Frei Vicente de Salvador, não deixam margem de dúvida quando à localização no Rio de Janeiro da Aldeia de São Lourenço. Outros bons autores aceitaram sempre essa verdade: Varnhagen, Vieira Fazenda, Felisberto Freire, Rocha Pombo, e, antes deles, Simeão de Vasconcelos, Rocha Pita, Duarte Nunes, Gabriel Soares, etc.
Diz Fernão Cardim: "Morava este índio uma légua além da nova cidade, mais dentro da enseada junto da praia". Só isso bastaria para sustentar a localização da aldeia em terras cariocas, exatamente no ponto em que a localizam os mapas da época, entre os rios Maracanã e Comprido (antes Caaguaçu ou Iguaçu). Mas prossegue o Jesuíta, na sua descrição: "Vieram nisto os franceses e deram vela com as quatro naus e oito lanchas, carregadas de pente de guerra dos tamoios, além de canoas sem conta para lançarem gente em terra. Ao passar por defronte da cidade não houve resistência, porque ainda não havia fortaleza na barra nem ao longo da praia. Perguntaram os nossos para onde era a ida, responderam das naus que iam tomar a Martinho e entregá-lo aos tamoios. O Govenador fortificou a cidade (...) e o índio também fez o mesmo em sua aldeia, entricheirando-a toda em roda de pau a pique (...) Desembarcaram os inimigos (...) que cobriam a praia e campos: nesta ocasião acorrem alguns moradores à aldeia (...) e levando de noite um falconete em uma canoa grande o meteram na aldeia, sem serem sentidos do inimigo".
E a ajuda, disse o historiador Frei Vicente, foi de 35 homens. Essa narrativa se vê claramente que não se deu o combate em Niterói, mas no Rio de Janeiro, onde, efetivamente, se localizava a aldeia. Senão, vejamos: que necessidade teriam os franceses de remar diante da cidade do Rio de Janeiro, se vinham de Cabo Frio e se dirigiam à Niterói? De que modo teriam os cariocas que socorreram Arariboia transposto a baía numa canoa grande carregando um falconete? Como o teriam levado, sem despertar atenção dos contrários, ao alto do morro? Por que campos se teriam espalhado os atacantes, se as águas e os lodaçais do antigo Saco de São Lourenço iam morrer aos pés do mesmo morro? Por que a minuciosa descrição de Fernão Cardim, cuja íntegra está nos Anais da Biblioteca Nacional, não se lembrou de dizer que a aldeia ficava deste lado da Guanabara, e nem sequer se lembrou da existência do outeiro, mas, ao contrário, situou-a na cidade do Rio de Janeiro?
O argumento mais forte de Norberto era a vazante das marés, frequente no antigo Saco de São Lourenço, fator que provocou encalhe das naus invasoras e vitória dos índios de São Lourenço. Mas esse fenómeno ocorria com igual e até com maior frequência na parte do litoral carioca em que estava a aldeia, como e pode ver na minuciosa "História e Descrição da Baia do Rio de Janeiro", de Augusto Fausto Neves de Souza.
2. Permanência no Rio
Provado que se localizava no Rio de Janeiro, ainda em 1568, a Aldeia de São Lourenço, resta estabelecer até quando ela ali continuou, e, com ela, seu chefe principal, Martim Afonso de Souza, o Arariboia. Aqui, a escassez absoluta de documentos não nos permitirá a fixação de uma data. Mas uma coisa é certa: muito depois de 1573, muito depois da morte de Arariboia ainda continuou no Rio de Janeiro, em terras de jesuítas, a Aldeia de São Lourenço.
Em 1570 lá estava a aldeia. É o que se conclui da carta que a 21 de maio desse ano escrevia o padre Gonçalo de Oliveira, Procurador do Colégio dos Jesuítas, ao Geral da Companhia de Jesus, Padre Francisco de Borja (São Borja): "Temos uma igreja de São Lourenço, daqui uma légua, na Aldeia de Martim Afonso Arariboia, de muita gente temiminó, toda cristã...".
Em 1573 lá continuava. Quando se procedeu à medicação da sesmaria dos jesuítas, a margem do Rio Comprido, onde se localizava a Aldeia, em janeiro de 1573, foi Arariboia inquirido, como testemunha, na qualidade de morador daquelas terras, tendo prestado a 27 de janeiro seu depoimento. Em 17 de setembro de 1573 ainda estava lá, como se vê da Carta de Sesmaria passada nessa data a Nuno Tavares, sesmaria essa que media "cem braças de terra de largo e duzentas de comprido no Cabo da Vargem, onde se chama Penedo do Descanso (Morro do Castelo), as quais cem braças se medirão da lagoa que está na terra de Francisco de Souza indo pelo caminho que vem da Aldeia de Martim Afonso..."
Na carta em que o padre Anchieta fala "de las cosas que sucedieram en el colégio el año de 1573", referindo-se aos atritos entre as índios, padres e brancos, diz que muitos moradores da cidade, "uns por mar, outros por terra, entrara na Aldeia tão desacertadamente que era para espantar". Ora, de que modo teriam os moradores do Rio de Janeiro atingido a Aldeia por terra, se ela estivesse do lado de Niterói? Pela Rodovia Rio-Magé?
Da medição da sesmaria dos jesuítas, concluída em 1574, resultou um mapa minucioso, traçado por Luís Teixeira naquele mesmo ano, e onde se assinala a Aldeia de Martim Afonso nas proximidades dos rios Comprido e Maracanã.
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Baía do Rio de Janeiro e a Cidade de São Sebastião da obra Roteiro de todos os sinais, conhecimentos, fundos, baixos, alturas e derrotas que ha na costa do Brasil desde o cabo de Santo Agostinho até ao estreito de Fernão de Magalhães, de Luís Teixeira, cerca de 1574. |
Em 1584 Arariboia participou, como principal de sua aldeia, das grandes festas que se fizeram pela chegada do Padre Cristóvão de Gouveia, Visitador da Companhia de Jesus. Existindo ainda por esse tempo no Rio de Janeiro a Aldeia de São Lourenço, não se pode supor que Arariboia chefiasse um agrupamento em Niterói, com nome igual ou mesmo diferente, porque, se assim fosse, forçosamente teria também participado daqueles festejos quem quer que chefiasse a aldeia carioca. Deduz-se, assim, que ainda em 1584 havia uma só Aldeia de São Lourenço, e esta se localizava na Guanabara.
Gabriel Soares também coloca a Aldeia de Martim Afonso no estuário que parte do aterrado, hoje compreendendo as áreas de São Cristóvão, Praça da Bandeira, parte da Tijuca e Méier, Rio Comprido, etc. Esse testemunho data de 1587.
Até então Aldeia de São Lourenço ainda não se transferira para Niterói. A descrição de Gabriel Soares foi inteiramente respeitada pelo Dr. Antônio Fausto Neves de Souza na "História e Descrição da Baía do Rio de Janeiro", trabalho acolhido e publicado pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, do qual era membro aquele ilustre estudioso fluminense.
Anthony Knivett descreveu também a Aldeia de São Lourenço e situou-a "dentro da distância de um tiro de arcabuz desta mesma cidade, na praia nordeste". Essa distância de "um tiro de arcabuz" foi a mesma que Pero Lopes de Souza apresentou, em seu "Diário da expedição de Martim Afonso de Souza", para abertura da barra da Guanabara. Além do mais, Knivett foi claro e específico em dizer que a Aldeia ficava "na praia nordeste". Ora, Knivett só chegou ao Rio de Janeiro em 1591. Daqui se saiu dez anos depois, publicando seu livro já na Europa. Disso se deduz que a Aldeia ainda estava no Rio de Janeiro em 1591, pois que a conheceu aquele aventureiro inglês.
E muito provavelmente continuava ali em 1601, quando ele partiu. Em caso contrário, teria alterado sua informação. De qualquer modo, ela continuava ali em 1598, quando escreveu o Padre Fernão Cardim. Como este mesmo Padre foi quem nos deixou uma descrição da morte de Arariboia, principal daquela Aldeia, não temos a menor dúvida em afirmar que o pretenso fundador de Niterói não povoou e nem explorou sua sesmaria niteroiense. Viveu sempre no Rio de Janeiro, onde se incluía entre os importantes moradores, e lá morreu, deixando em seu lugar de chefe a seus filhos, netos e bisnetos.
3. Arariboia ficou no Rio de Janeiro
Manuel Benício, querendo provar que Arariboia se transferiu para Niterói assim que contemplado com a sesmaria que fora de Antônio de Mariz, levantou um argumento circunstancial de caráter jurídico: o sesmeiro tinha de ocupar sua terra, iniciar a cultura em quatro meses, fortificá-la em três anos, etc. De fato, a lei que regulava a distribuição de sesmarias rezava assim. Daí a ser cumprida é uma distância muito grande. Além do mais, a reversão da posse podia valer para um bombardeiro qualquer, como Gaspar de Figueiredo, que de fato perdeu terras por não tê-la explorado; mas não para um chefe de tão alta hierarquia e tão reconhecido valor como Arariboia, já então elemento de prestígio na comunidade carioca, pela participação nas lutas de conquista.
Mesmo em relação aos desinteressados pelas terras que recebiam, era lenta a ação coercitiva do governo, que só retomava a concessão se alguém solicitasse as mesmas terras, argumentando o abandono. No próprio caso de Niterói, existe exemplo disso. Terras concedidas a Diogo da Rocha, em 17 de outubro de 1567, passaram a 23 de março do ano seguinte ao fidalgo Antônio de Mariz, que as pedira alegando a permanência do primeiro agraciado na Bahia: mas as terras concedidas a Gaspar Figueiredo só tiveram outro dono 18 anos depois de terem sido abandonadas pelo primitivo donatário; e Rui Gonçalves, que também recebeu sesmaria na região de Niterói e nunca a aproveitou, só teve sucessor 30 anos depois. Assim, vê-se que a lei não tinha cumprimento rígido, muito menos em se tratando de tão considerado beneficiário.
Ademais, a lei que Benício só parcialmente citou, também dava ao sesmeiro certos direitos, como o de renovar a doação, findo o prazo inicialmente concedido para a exploração das terras. Esse prazo também só se contava a partir da posse. Assim, Arariboia poderia livremente continuar no Rio de Janeiro pelo menos até 1579, sem perigo ou temor de sofrer prejuízos. Mas ainda tem mais: o beneficiado devia confirmar em Lisboa a doação, para o que tinha prazo de um ano. Então teremos que não estava obrigado o chefe índio a transferir-se para a sua sesmaria senão em 1580.
Outro argumento de Benício pode parecer, à primeira vista, consistente: Arariboia não teria ficado 5 anos em terra alheia, no caso propriedade dos jesuítas, tendo terras próprias para cultivar e onde viver. O que Benicio não sabia, nem Joaquim Norberto, nem Figueira de Almeida, nem Matoso Maia, nem muita gente mais, é que Arariboia não era um índio qualquer, muito menos um "pé-rapado". Imiscuíra-se nos negócios da urbe, onde se tornara influente. Pelo menos desde 1568 possuía umas casas no centro da Cidade do Rio de Janeiro, na própria Rua Direita, hoje Primeiro de Março, então a mais importante de suas artérias. Manuel de Brito, que foi grande proprietário no centro carioca, subscrevia a 22 de julho de 1568 um requerimento a Salvador de Sá, pedindo "vinte e cinco braças de terra no lugar onde tem suas casas, que é onde Martinho Índio tem suas casas, e nele estão as dele suplicante feitas".
Além dessas casas, outra sesmaria possuiu Arariboia, doada a 8 de abril de 1573 e localizada às margens do rio Guapi, no atual município de Magé, medindo 3.000 braças (uma légua) quadradas. Explorando ou não essas terras em Magé, também esta sesmaria não lhe tiraram: em 1608, pertencia ela a seu filho, Martim Afonso de Souza, como se vê de um requerimento de 15 de janeiro desse ano, em que Francisco Alvares pedia "uma légua do rio Guapiaçu, aonde acabar a data de Martim Afonso...".
4. Pioneiros da Colonização
Nada menos que 12 sesmarias foram distribuídas na região de Niterói antes de Arariboia ser contemplado com a sua, em 1568. Ao tomar posse, em 1573, das terras que lhe cabiam, já se haviam concedido pelo menos mais sete. Desses 21 sesmeiros muitos não se interessavam pela região, e não aproveitaram suas concessões; outros, ao contrário, deram início à colonização e deixaram longa descendência; de um terceiro grupo não encontramos melhor notícia.
5. A Capela de São Lourenço
Partindo do princípio erroneamente propagado de que Arariboia viera habitar no outeiro de São Lourenço em 1568, ou 1573, quase todos os historiadores incorreram no erro de atribuir-lhe, muito naturalmente, a construção da Capela de São Lourenço, que ainda hoje existe. Teria isto ocorrido entre os anos de 1576 e 1578, com o auxilio dos padres Braz Lourenco, Baltazar Alvares, Gonçalo de Oliveira, Luís da Grã e outros mais. Há quem fale até em Nóbrega, que estava morto e enterrado desde 1570.
Não podemos (nem devemos) contestar a participação de Arariboia e dos temiminós na construção da Capela de São Lourenço. Só que esta já estava levantada a 21 de maio de 1570, e no Rio de Janeiro, como se vê em carta do Padre Gonçalo de Oliveira ao Geral Jesuíta, Francisco de Borja. Dessa capela não temos outra notícia, e não podemos atribuir corretamente sua construção a nenhum dos jesuítas citados. O padre Gonçalo não a levantou. Se o tivesse feito, teria declarado isso na mesma carta, onde não se refere a seus responsáveis. E tendo chegado ao Rio em 1570, pouco antes de escrever comunicando a sua construção, não parece provável sua participação nela.
Baltazar Alvares também não pode ter construído a capela, pois só chegou ao Rio em 1574. E não pode também ter assistido na aldeia juntamente Gonçalo de Oliveira, porque veio justamente preencher a vaga deixada por este jesuíta, que se retirava para a Bahia. Anchieta e Nóbrega estavam no Rio de Janeiro entre 1567 e 1569, mas justamente nesse período encarregavam-se da construção do Colégio do Rio de Janeiro, o que, de certo modo, os impede de participação muito ativa na construção da capela. Além disso, eram figuras muito importantes para que o padre Gonçalo as deixasse de citar como responsáveis pela construção, na carta citada.
Restam os padres Braz Lourenço e Luís da Grã. Este excluí-se logo, porque seguira desde 1567 para São Vicente e daí para Salvador, onde estava em 1570, ano em que a capela já estava levantada. E o padre Braz Lourenço até 1572 estava no Espírito Santo. Foi então para a Bahia, e só em 1573 voltou ao Rio de Janeiro. Portanto, nenhum dos padres citados pode ter tido participação na construção da primeira capela de São Lourenço, que também não se pode confundir com a que se construiu em Niterói, muitos anos depois.
Infelizmente, as informações que acabamos de recusar nos chegam como bebidas na obra fundamental do Padre Serafim Leite, a "História da Companhia de Jesus no Brasil". Nessa mesma obra fomos buscar os elementos de refutação. Conclui-se que todos os nossos historiadores citaram uma fonte que, na realidade, não pesquisaram.
6. O Aldeamento em Niterói
A construção da primeira capela, em 1627, é o primeiro sintoma da permanência do aldeamento índio em Niterói. Não existe nenhum outro anterior a este. Pelo menos na vasta bibliografia que tivemos em mão, e muito humildemente nos dobraremos a quem nos prove em contrário.
Coincide esta época com o estabelecimento dos jesuítas na região de Jurujuba, que então compreendia todo o Saco de São Francisco, e também com a desastrosa experiência de introdução do goitacá nas comunidades temiminó, o que em grande parte concorreu para o desaparecimento de ambas as raças.
Mas essa é também uma época de intensa penetração branca. O aventureiro português, que veio povoar a colônia e tentar fortuna, espalhou-se com facilidade pelas imensas regiões inexploradas da sesmaria dos índios e dela jamais se apartou, cada vez mais restringindo o aldeamento aos limites do outeiro de São Lourenço. Em meados do século, o outeiro estava rodeado de engenhos e fazendas, nas quais iam se levantando novas igrejas, originando novos povoados, como São Domingos e São João de Icaraí. Os índios não tinham como resistir.
O próprio jesuíta, tão tradicionalmente seu amigo e protetor, estava ali, como intruso, em suas terras. No máximo, negociavam esses legítimos proprietários da terra niteroiense com os invasores dela. E nessas negociações, via de regra, saíam sempre perdendo. Uma das regiões mais prósperas da sesmaria dos índios, a de Maruí, foi trocada por terras muito menos valiosas, em 1656. Em outras áreas, como Icaraí e Pendotiba, o invasor nem tomava conhecimento do verdadeiro senhor. Uns poucos proprietários pagavam aforamento ao capitão-mor da aldeia de São Lourenço. A própria Câmara, depois a própria Província, finalmente o próprio Estado andaram tomando conta de boas porções dessas terras dos temiminós. Só com muito boa vontade, e algum desconhecimento de causa se poderia atribuir ao aldeamento de São Lourenco um mínimo de influência no processo de desenvolvimento da cidade.
7. A Aldeia e a cidade
Morto Arariboia, sucedeu-o naturalmente seu filho. Martim Afonso de Souza, mas não consta que tivesse transferido a aldeia para Niterói. Não sabemos nem quando nasceu, nem quando morreu. Mas sabemos que não teve muito tempo de preocupar-se com os negócios da Aldeia, porque empenhou-se na conquista da baixada dos Goitacá (Macaé) com um de seus filhos, Manuel de Souza. Martim Afonso foi depois para Portugal, onde recebeu patente de Capitão-Mor dos Índios da Repartição do Sul do Brasil, passada por D. João IV.
Seu filho, Manuel de Souza, sucedeu-o como Capitão-Mor da Aldeia de São Lourenço, e é no seu período de comando que ela se transfere para o outeiro niteroiense. Mas também esteve empenhado na campanha de Macaé. Também seguiu para Portugal, em companhia do pai, de lá regressando com patente de Sargento-Mor dos índios da Repartição do Sul do Brasil, passada também por D. João IV. Não permaneceu como Capitão-Mor de São Lourenço. Preferiu chefiar a Aldeia de São Barnabé para o que foi nomeado por Salvador de Sá. Dom João IV confirmou essa nomeação.
Com sua ausência, Braz de Souza da Costa pediu e obteve o cargo de Capitão-Mor da Aldeia de São Lourenco, do mesmo Governador e do mesmo Rei. Já estávamos, então, em 1644. Pouco depois começavam a surgir notícia de diversas igrejas, que denunciam povoações mais ou menos importantes. Na década de 1660, já existiam as de São Domingos, Nossa Senhora da Conceição, São Sebastião de Itaipu, São Gonçalo, São João de Icaraí, Nossa Senhora da Boa Viagem...
Os verdadeiros núcleos de civilização, desenvolvimento e progresso foram as fazendas de São Domingos, na orla marítima central, pertencente a Domingos de Araújo, que faleceu em 1652, e as de São Gonçalo, do Maruí a Guaxindiba, em especial as propriedades de Gonçalo Gonçalves, originarias da povoação que já em 1647 era freguesia e hoje é o município de São Gonçalo. Pouco depois começava o desenvolvimento em Itaipu, Piratininga, Pendotiba, Icaraí, enquanto a aldeia ia regredindo sempre, numa inversão surpreendente.
Quando Niterói foi Vila, em 1819, havia no aldeamento de São Lourenço, não mais que 200 índios, vivendo da pescaria doméstica, do comércio de cerâmica, um ou outro, dos mais fortes vencendo um soldo irrisório como remador do Rei. Quatorze anos depois, Niterói era cidade e o número de índios baixara para 142. Sendo 106, em 1844, o Presidente da Província, João Caldas Viana, já observava em seu relatório que a Aldeia estava na mais completa decadência e até a pequena indústria de cerâmica desaparecera. Em 1851 havia apenas 90 índios no outeiro. Note-se e por essa época, Niterói já produzia até navios de guerra nos estaleiros que Mauá instalara em 1846 na Ponta da Areia.
O brilho, a grandeza, o poderio da Aldeia de São Lourenço, que um ou outro historiador menos avisado por vezes se lembra de mencionar, não resiste à mais suave análise, ao mais superficial exame, à mais longínqua comparação com o que foi o desenvolvimento de outras áreas da cidade, hoje bairros populosos, distritos fortes, municípios prósperos.
Portanto, a memória de Arariboia que nos perdoe, e os indigenistas de hoje (tão ultrapassados) também. Mas sua estátua está no lugar errado.
O Fluminense, 8 de julho de 1973
* Emmanuel de Bragança é como assinava o historiador Emmanuel de Macedo Soares
(1) Introdução
(2) Emmanuel de Bragança: Verdades (Mal Comportadas) Sobre a Fundação de Niterói
(3) José Inaldo: Niterói quatrocentão mesmo - reparos e achegas a um artigo
(4) Emmanuel de Bragança: Mistificação em torno de verdades amargas
(5) José Inaldo: Da Batalha de Itararé ao Motivo secreto
(6) Aguarde o último capítulo